Ainda se confunde muito ideia de jogo com modelo de jogo.

Ora se usam estes conceitos de forma entremeada, para se referir à mesma coisa, como se o que viesse primeiro à cabeça fosse o mais indicado. Ora se aplicam em contextos diferentes, bem definidos, mas com os quais não estou convencido de que sejam os mais corretos.

Agora que dei a ideia de que sei do que estou a falar, a revelação: o que pretendo com este mini-ensaio é clarificar o que penso sobre esta relação tão importante entre dois tópicos vitais para processo de construção de um jogar de uma equipa de futebol. Ainda não é desta que vou tentar ensinar alguma coisa.

A alegoria dos construtores de automóveis

Um domínio onde parece estar muito bem definido, e interiorizado já agora, a distinção-relação entre ideia e modelo é no dos automóveis. Parece-me a mim que ganhamos em tirar elações do como as coisas ligam lá e tentar aplicar aos nossos conceitos em estudo. Peço só que se aguentem aí enquanto tento levar esta comparação até ao fim.

Há dois tipos de construtor de automóveis. Distingui-los é muito fácil. Basta estar atento ao que dizem os seus clientes quando nos contam do negócio.

Um dos tipos vai ter clientes a dizer: "vou comprar um Lamborghini", "comprei um Porsche", ou "o meu chefe todos os anos troca de Mercedes". Nem precisam de dizer que modelo, porque independentemente disso, já todos sabem o que o símbolo significa, a ideia por detrás, o impacto que sentem quando um lhes passa ao lado, a experiência que lhes está prometida, e compram isso.

O outro tipo de fabricante tem clientes que se referem ao negócio de maneira ligeiramente diferente: "vou comprar um Clio", "comprei um Golf", ou "vou ficar com o Ibiza do meu tio". Todos estes carros tem uma marca, símbolo e mensagem que procuram transmitir, mas não é o mais importante. As pessoas compram a utilidade que aqueles carros foram feitos para oferecer, e para isso, falar do modelo é o principal e suficiente.

Uma marca de automóveis tem várias características interessantes:

  • produz carros de determinados modelos;
  • pode atualizar, descontinuar, ou inventar modelos;
  • tem um símbolo.

Antes de qualquer modelo ser colocado em produção, ou até ser desenhado, já existe um símbolo, uma história, uma reputação de um sem número de clientes que tiveram com aquela marca um determinado tipo de experiência e/ou utilidade.

Um novo modelo nasce fruto do que esse passado significa e do que esse passado pesa na escolha do que a marca quer para o seu futuro. Se olhamos para um modelo de carro que nunca vimos antes e conseguimos adivinhar a marca é porque vemos lá algo que reconhecemos, algo que nos foi mostrado noutras ocasiões, por ventura uma ideia que se manteve desde outros modelos.

Não quer dizer que se não reconhecermos a marca à primeira vista, esta não tenha uma história, uma imagem, uma identidade. O mais provável é essa marca não fazer da demonstração da sua ideia algo tão fundamental. Porque marcas diferentes procuram despertar coisas diferentes em quem compra, anda, ou vê, sem esquecer que, no final, o carro sempre tem de levar as pessoas do ponto A ao ponto B.

Quando uma marca apresenta à escolha vários modelos, com as mais diferentes características, a principal elação é que tenta poder servir vários perfis de cliente, estando estes mais do que bem identificados. É essa a razão para de uma mesma ideia se possa dar origem a vários modelos. Cada modelo é uma aposta da marca em ser a melhor opção para um perfil de cliente.

Agora imaginem como marcas diferentes, com as suas ideias e filosofias distintas, irão competir pelo mesmo cliente. De alguma forma, para o mesmo perfil, as construtoras chegam a modelos completamente diferentes! É o resultado da resposta à pergunta:

Dado quem somos, qual é o modelo que vai oferecer tudo aquilo que este cliente procura?

Quando alguém compra um carro tem duas dimensões de modelos que podem afetar a sua escolha. Que modelos dentro da ideia com a qual me identifico e/ou que modelos são mais adequados para a utilização que pretendo fazer. E não, eu não me estou a esquecer da questão monetária. O mais fácil será assumirmos que os menores orçamentos só vão poder escolher modelos pela utilidade e os grandes orçamentos são os que vão cometer as excentricidades de comprar pelas "sensações". É certo que maiores orçamentos significam maior leque de escolhas, mas é apenas isso, tamanho de leque. Não tenho, no entanto, problema nenhum em reparar que grandes orçamentos são capazes de fazer escolhas baseadas no tipo de viagem que tem de fazer, como vejo também pequenos orçamentos a fazer escolhas baseadas no que querem sentir durante a viagem.

Desde que se saiba o que se quer, e este é um grandessíssimo "se", como construtor, será sempre a decisão mais correta desenvolver um novo modelo de acordo com a ideia da marca, assim como cliente, comprar o modelo de acordo com o que esperamos de um carro, seja para nós mais importante a utilidade ou a identidade.

A minha proposta é que também é assim com os treinadores.

A ideia de jogo do treinador dá para vários modelos

O treinador sendo o construtor de um jogar, tem na sua equipa, e clube, o cliente maior do seu modelo. Como tem de estar claro para todos, este modelo, nunca vai ser igual a outro que tenha, ou vá ser, construído no seu palmarés.

Isto é o inegociável. Cada modelo de jogo é um espécime único de algum ADN. A concretização, a posta em prática, de uma ideia de jogo. Não há volta a dar. Se for para apostar nalgum sucesso, só me apanham se a ideia existir primeiro, bem vincada e consolidada, para depois ir dando origem aos modelos.

Grandes são os treinadores que ao longo da sua carreira tem modelos para todos os gostos sem nunca terem desvirtuado a sua ideia de jogo. Estes treinadores são excelentes em duas coisas muito simples:

  • sabem muito bem como se deve jogar;
  • sabem muito bem qual é o passo seguinte que mais aproxima a sua equipas desse jogar;

E cliché dos clichés: isto é um processo, uma coisa alimenta a outra. Sem ideia não há modelo que exista. Sem modelo não há ideia que resista.

Por isso, cada treinador terá de fazer uma reflexão sobre se a sua ideia de jogo e que modelos poderá alimentar. Será capaz de dar origem a qualquer modelo que lhe seja "pedido"? Será sequer sua pretensão ir, alguma vez, ao encontro do que lhe é pedido ou prefere que seja o "cliente" a preferir a sua ideia? Será um treinador a que os clubes se referem pela marca e filosofia primeiro, ou será um treinador a que se referem, inicialmente, pelos modelos e utilidade.

Se detetam algo depreciativo, lírico, pragmático, resultadista, para alguma das partes, nesta comparação não se apoquentem, porque é apenas falta de qualidade do autor para exprimir esta ideia.

Não querendo rotular, mas rotulando, Guardiola, Bielsa e Nagelsmann estarão de um lado do espectro, enquanto Ancelotti, Klopp e Mourinho do outro. São só alguns exemplos que facilmente se consegue perceber a que grupo pertence cada um. Todos treinadores vencedores. Todos treinadores que põem em primeiro lugar coisas diferentes.

Como treinador não acho que tenha de procurar estar mais de um lado ou de outro. Mais importante é perceber com que valores me identifico, de que forma(s) é que o futebol melhor se joga, e como organizar uma equipa em torno desses pontos de partida. Onde quer que "caia" dentro deste espectro será sempre o sítio certo. Esta reflexão que cada treinador fará garante isso.