Uma coisa que Vítor Pereira recomenda a todos os treinadores é identificar e catalogar todos os princípios, e comportamentos, que pretendemos que as nossas equipas exibam nos diferentes momentos do jogo.

"Quando vamos para o treino a primeira vez é um bocadinho com estas referências: equipas que para nós apresentam um jogo de qualidade. O que é que é fundamental definir? Ter ideias claras de como é que eu quero atacar, como é que quero defender, como é que quero transitar." - Vítor Pereira no Sindicato de Jogadores

Não é uma recomendação acessória. É a recomendação base que vai sustentar toda a construção de um modelo de jogo no clube em que estamos, ou vamos treinar.

A importância do catalogar na nossa Ideia de Jogo

Catalogar é apenas a recolha e tratamento de vídeos ou imagens de equipas a exibir uma determinada solução para um problema do jogo. Solução essa que já tínhamos antes determinado ser um recurso que encaixa na construção da nossa Ideia de Jogo.

O grande desafio para a maioria dos treinadores é documentar todos os princípios da sua Ideia de Jogo recorrendo exclusivamente a imagens das suas equipas. Se por um lado esse conjunto de intenções tem um cariz de ideal difícil de atingir na plenitude pela sua equipa (e por consequência difícil de documentar em imagens), por outro é natural que algumas das suas ideias sejam inspiradas no trabalho de outros treinadores (e aí há que recorrer a imagens dessas outras equipas).

Ao escrever este mini-ensaio1 convenci-me, no entanto, de duas coisas: este catalogar pode ser mais interessante do que se pensa à partida e distribuir também dividendos maiores.

A identificação de que soluções vão de encontro à forma como pretendemos ver as nossas equipas a jogar pode, e deve, ser feita estando atento ao jogo de qualquer equipa, independentemente do nível que apresente, ou do contexto onde está inserida.

Mas há ressalvas importantes...

Em teoria, as melhores equipas apresentarão um maior número soluções táticas de qualidade. E com toda a naturalidade, se são as melhores equipas as mais vistas é muito provável que sejam as que com mais ideias contribuem para o repertório tático dos treinadores.

Contudo, pode haver armadilha.

Não podemos cair no erro de atribuir a uma equipa um maior valor tático por culpa dos melhores resultados que obtém. Nem sempre uma coisa é responsabilidade da outra.

Como escolher as melhores referências para alimentar a nossa Ideia de Jogo?

Temos de o fazer em duas fases:

  1. Identificar que comportamentos queremos referenciar;
  2. Identificar as melhores equipas para nossa referência.

Se tirarem apenas uma coisa desta reflexão escolham isto:

Depois de sistematizado um determinado princípio/comportamento na vossa Ideia de Jogo devem poder visualiza-lo mentalmente sem nenhum jogador ou camisola específica associada.

Na minha Ideia de Jogo não pode haver a "pressão à Klopp", ou a "aquela saída a 3 como o City faz".

Devemos poder descrever o que pretendemos a quem nunca tenha visto jogar nenhuma das equipas que iremos usar como referência. A chave é a qualidade com que fazemos a caracterização do par: problema causado pelo adversário - solução encontrada por nós.

Quanto mais isolado este princípio estiver do contexto em que o vimos, mais fácil será definir se é uma solução que vai de encontro à nossa Ideia de Jogo ou à especificidade do contexto onde estamos inseridos.

Tento ter isto sempre em mente: embora a equipa que nos tenha servido inicialmente de referência poder ser de qualquer contexto (podemos ter visto algo muito interessante no distrital de juvenis e até nem ter vídeo do jogo) é muito importante encontrar depois equipas que apresentem aquele comportamento e que tenham duas características:

  1. São de um contexto semelhante ao da equipa que treinamos (ou seja mais provável vir a treinar);
  2. Apresentam um modelo de jogo com o maior grau de princípios comuns ao que pretendemos para a nossa equipa.

Um exemplo prático

Podemos querer referências para uma saída com GR + centrais + 6 contra pressão alta e em que o GR é o homem livre.

GR+3x3
GR+3x3

O Barcelona de Guardiola até pode ser o expoente máximo das soluções para esse problema, mas salvo raras exceções, não é aí que devemos ir "beber".

Ganhamos mais em considerar para estudo e sistematização do mesmo momento as soluções do Sassuolo de De Zerbi ou o Rio Ave do Carlos Carvalhal só para dar alguns exemplos mais conhecidos.

Porquê?

Embora sejam equipas de alto nível, de primeira liga, são principalmente equipas que executam várias soluções de qualidade, face a este problema da 1ª Fase de Construção, e contra adversários de maior valor individual. É que mesmo não estando a maior parte dos treinadores na primeira liga, estudar e ter como exemplo os comportamentos de equipas que não se desvirtuam quando enfrentam adversários com maior qualidade individual é de grande valor.

E por uma razão muito simples.

Como é mais provável que durante as nossas carreiras estejamos mais vezes ao comando de "Sassuolos" do que de "Barças", porque não fazer das nossas referências os que se agigantam em vez de só os gigantes?



  1. Baseado nesta minha thread no Twitter.