Quando penso em Vítor Pereira não penso só no que as suas equipas conseguem fazer dentro do campo. Que continua a não ser fácil dar o devido valor. Mas penso também que é talvez o treinador português que melhor fala sobre o jogo de futebol para a quantidade de vezes que o faz. São poucas as vezes, mas ficam na memória.

No passado dia 17 de Junho o treinador de Espinho esteve no, já lendário, Quarentena da Bola. Foram mais de duas horas de conversa e, caro leitor, não houve um minuto de desperdício.

Esta será a parte I de uma série de artigos em que procuro continuar a conversa sem o mister saber, pegando nas ideias que mais me fizeram pensar, partilhando as questões que fui fazendo e as conclusões a que fui chegando. A segunda, e última parte, está disponível aqui.

O espectro de experiências dentro da equipa técnica

"Eu queria ter um treinador dos antigos a aconselhar-me todos os dias, com coisas de liderança, coisas de relacionamentos." - Vítor Pereira

O princípio aqui é o do valor que advém de um leque de experiências o mais alargado possível dentro de uma equipa técnica. Vítor Pereira não refere, mas aposto que tanto acrescenta um treinador dos "antigos", como um treinador no seu primeiro ano de experiência.

Um acrescenta pelo catálogo de situações, de tudo e mais alguma coisa, por onde já passou, e pela garantia de termos connosco alguém que muito dificilmente é apanhado de surpresa, o que no futebol é o mais fácil de acontecer. O mais jovem acrescenta pelo catálogo de questões que trás consigo (mas que se lhe encoraje pôr tudo em causa que não lhe seja obvio). É expectável que uma equipa técnica junta, durante vários anos, viva as experiências em conjunto e que tire elações em conjunto. Daí até ao mindset "nós fizemos isto sempre assim e nunca nos demos mal" é um instante e ninguém vai dar por isso.

Entre duas equipas técnicas de grande qualidade eu vou apostar sempre naquela que tem o inocente que anuncia quando o rei vai nu.

A influência da personalidade do treinador na sua ideia de jogo

"Eu acredito que a personalidade das pessoas tem uma influencia determinante naquilo que é o jogo que defendem." - Vítor Pereira

"Yo recuerdo perfectamente cuando el Cholo Simeone estaba en Argentina antes que llegara al Atlético de Madrid vino a vernos. Me encantó porque hablamos y recuerdo que dijo: "A mí esto no me gusta, no lo siento"(...)Tú no puedes hacer algo que no sientes" - Pep Guardiola

E se nós treinadores tivéssemos muito menos influência na nossa ideia de jogo do que pensamos. Este conjunto de intenções prévias de como pensamos ser melhor vencer uma partida de futebol pode não ser o castelo de cartas que julgamos ter montado. E se partes do castelo já lá estivessem antes? E se eu quiser que as minhas equipas joguem num bloco alto, mas tudo na minha personalidade for conservador e calculista? Vai a minha mensagem pensar com a mesma eficácia? Não se notará no fundo uma contradição entre a forma como comunico e como reajo à adversidade?

Confesso: nunca tinha pensado nestas questões.

Por ventura nem serão muitos os casos de contradição. Talvez os treinadores apresentem uma ideia de jogo oriunda das suas vivências, educação e personalidade e o que existe é apenas a ilusão de que aquele jogar nasceu, naquele momento, quando pensou a primeira vez nisso. É mais uma suposição minha. Ainda assim esta frase de Vítor Pereira pode ajudar a explicar quer a variedade de abordagens ao jogo, quer o porquê de haver tamanho "repúdio" por certas ideias. Nada mais natural se não fizemos nenhuma parte da viagem daquele treinador.

Não escrevam o vosso modelo de jogo a caneta

"Eu e os meus adjuntos fomos construindo, ao longo do tempo, uma forma de olhar para o jogo. Mas quando detetas que estás a ir para além da capacidade de resposta deles (os jogadores) tens de voltar atrás, e isso é que é ir modelando." - Vítor Pereira

Esta frase vinca o quão aberto deve estar um modelo de jogo em cada momento. Não é só o processo de interiorização das ideias do treinador por parte da equipa que nunca se pode considerar como finalizado, mas também o próprio modelo, que nunca deixa de ir sofrendo os ajustes necessários.

Não acredito que este "voltar atrás", como às vezes também será um "puxar à frente", deva ser uma mudança drástica no rumo que se vinha a propor. Se vínhamos a treinar para jogar com a nossa linha defensiva subida e os resultados (do processo, não do jogo) não são os que nós esperávamos, talvez o "voltar atrás" deva passar por simplificar os exercícios, diminuir o número de referências, experimentar outras abordagens e não, simplesmente, decidir jogar em bloco baixo.

Pôr as ideias no papel tem o seu propósito

"(Antes de começar a carreira de treinador) Estive quatro meses a construir exercícios, dia e noite. Eram tantas as ideias na minha cabeça, que achava que quando começasse a treinar tinha de ter tudo sistematizado (...) e nunca fui ver um exercício a esse dossier." - Vítor Pereira

Este é um dos grandes desafios do treinador. Como é que se vai da ideia à operacionalização da mesma? Encontrar a solução para um problema que o adversário nos coloca não é o mais difícil na maioria dos casos. Às vezes até existem múltiplas soluções para o mesmo problema e damo-nos ao luxo de poder escolher. A grande questão é como propor uma dessas intenções aos nossos jogadores e levá-los percorrer o caminho até as apresentarem em campo.

Vítor Pereira admitir que nunca foi ver um exercício ao dossier, que não lhe deu descanso durante quatro meses, é uma das minhas partes favoritas de toda a conversa.

É um exemplo vivo do que falei aqui quando apresentei as minhas intenções para o Este Meu Jogar. É uma viagem de descoberta que todos os treinadores têm de fazer. É um mapa que temos de desenhar e que deixa de ser preciso no momento que fica concluído. Por isso o dossier nunca mais foi aberto e porque nunca parou de evoluir. Todas as experiências a partir dali tiveram a sua influência e, de forma iterativa, foram limando aquela primeira versão das suas ideias.

Objetivo da formação: ensinar

"A formação é um laboratório, é preciso ensinar(...) muitas vezes, por querer ensinar-lhes o jogo, retirava-lhes aquilo que os distinguia e isso é que é um erro." - Vítor Pereira

O jogo ter de ser ensinado dá pano para mangas e para muitos artigos em blogues.

Aqui Vítor Pereira começa a introduzir a, já famosa, expressão "régua e esquadro". Num momento em que continua a ser motivo de debate o principal objetivo da formação, não parece haver dúvidas para Vítor Pereira. Há que ensinar. No entanto, deixa o alerta para não cometermos o mesmo erro que partilha: quando transformamos o ensinar no jogar por eles e/ou lhes retiramos a responsabilidade de decidir.

Mas ainda vai mais longe.

O formatar de jogadores com instruções programadas não lesa só o que o jogador é, mas sobretudo o que podia vir a ser. O mais grave é o polir dos diamantes que torna todos os jogadores iguais, com as mesmas qualidade e defeitos. Se cada jogador do plantel fizer bem uma coisa diferente dos demais são vinte trunfos à nossa disposição, caso queiramos apostar nessa diferenciação. Se por acaso, desses vinte, três tiverem um bom passe longo, e nós quisermos sempre jogar curto e junto à relva, como, e quanto, é que vamos apostar nesses jogadores? Provavelmente a resposta não passa por transformar esses jogadores em jogadores "normais".

Maior qualidade = maior liberdade

"À medida que vais crescendo, o jogo vai tornando-se menos de régua e esquadro e com um grau de liberdade maior." - Vítor Pereira

O mister Vítor Pereira insiste várias vezes neste ponto. O "crescer" aqui é no patamar do clube que treinas e na qualidade dos jogadores à tua disposição. Há aqui pelo menos duas linhas de raciocínio que vale a pena explorar.

A primeira é a da qualidade absoluta dos jogadores. Melhores jogadores conseguem dar mais respostas e com maior percentagem de acerto. Isto aumenta também a probabilidade destes jogadores conhecerem facetas do jogo que o treinador não alcançou, para alem da capacidade de, para uma dada situação, poderem criar uma solução nova, enquanto o treinador só iria poder propor uma do "catálogo". O sucesso está no ter, ou não, a sensibilidade para reconhecer e fazer uso das qualidades extra que cada jogador traz consigo independentemente do que lhe pode pedir o treinador.

Isto só por si seria suficiente para um treinador inteligente poder distribuir uma parte do comando do que se passa em campo.

Mas existe aqui algo mais. A segunda linha de raciocínio passa pela perceção de qualidade do treinador em relação à dos jogadores e o caso particular de Vítor Pereira que chega a principal do FC Porto depois de anos em divisões inferiores ou como adjunto. Não é igual chegar a um clube depois de vencer uma Champions, ou várias, ou chegar vindo de um patamar inferior e sem títulos para amostra.

É preciso ser um verdadeiro líder para ter uma confiança completa nas nossas competências e ao mesmo tempo a humildade total para reconhecer que não a temos de a mostrar toda no primeiro dia e que, se calhar, vamos aprender mais com os jogadores do que eles connosco.

Vítor Pereira até dá alguns exemplos: o que aconteceria se pedisse ao Óscar para ajustar um metro o seu posicionamento ou o estar constantemente a parar exercícios sempre que vê algo de errado, ou porque os jogadores não estão a fazer o que o exercício "pede". E depois oferece a solução: com o subir da qualidade jogadores diminui o efeito da voz do treinador no exercício. Não que o feedback deixe de ter valor. Nada disso. Mas o exercício tem de estar construído de uma forma que os jogadores, jogando-o, nele encontrem as respostas.



Continuará.