Não é todos os dias que temos acesso aos planos das unidades de treino dos melhores treinadores portugueses. Aliás, é praticamente nunca.
Contudo, há uns tempos, no Twitter, o treinador Pablo Masso partilhou, e recordou, aquilo que foram os planos das unidades de treino do Porto de Villas-Boas na preparação para a final da Supertaça de 2010 com o Benfica.
Os detalhes que contem são muitos e valiosos e como tal, achei que valia a pena recolhe-los e destilá-los para que fosse mais fácil poderem analisar o que vos interessa e acrescentar/melhorar algo nos vossos próprios métodos.
"Las ideas son de todo el mundo y yo he robado lo máximo posible" - Pep Guardiola
O desenho do exercício é sobre um esquema do terreno e jogo
Estando já no relvado, interpretar o plano de treino especificado desta forma torna-se mais fácil. Uma coisa é saber que o espaço para o exercício é 25x40, outra é saber que vai da linha limite da grande área ao grande círculo.
Podemos também julgar melhor se vários exercícios a decorrer em paralelo terão espaço suficiente entre si.
Uma outra vantagem é a potencial maior facilidade em visualizar e esquematizar comportamentos e movimentações pretendidas se forem desenhadas no espaço onde queremos que ocorram dentro de campo.
Quanto mais específico o exercício mais descrito deve ser
Todos os exercícios nos planos de AVB tem associado um número, um nome/descrição e uma duração. Alguns podem ter também um desenho ilustrativo
O número identifica a ordem em que aparecem na unidade de treino, mas também que permite identificar que exercícios vão decorrer ao mesmo tempo.
O tempo de duração, dependendo do caso, aparece complementado com a duração de cada repetição e de recuperação.
Quanto à descrição há uma grande diferença entre exercícios que são de aquecimento ou um meinho e aqueles que formam a parte fundamental da sessão de treino, isto é, onde vamos pedir respostas de maior rigor técnico-tático aos nossos jogadores.
Na imagem em cima é visível a diferença na descrição de dois exercícios. Enquanto no meio campo superior estão os jogadores que tiveram mais tempo de jogo no Domingo anterior (objetivo principal é recuperar), em baixo estão os que não jogaram. Para estes últimos, os objetivos do exercício são muito mais detalhados (Comportamentos zonais. Click mental para transição defensiva. Reação à perda. Variação de corredor até encontrar espaços de penetração no corredor central.) e aproximam a intensidade tática do exercício, dentro do possível, à do jogo.
Se não estás a exagerar no detalhe é porque ainda não detalhaste o suficiente
AVB deixa-nos vários os detalhes microscópicos ao longo de quatro planos de treino. Cada um insignificante por si só, mas quando todos fazem parte da mesma metodologia de treino são esses que a vão sustentar e elevar para outro patamar.
É um instilar de uma cultura, entre todos os que planificam e conduzem as sessões de treino, de atenção máxima ao detalhe. Aos líderes de equipas, uma coisa é dizer que temos de ir ao mais ínfimo detalhe, outra é delinear um caminho que só por minúcia e atenção se consegue seguir. Ambas as estratégias são necessárias, mas o mais provável é apostarmos muito mais numa.
O exemplo da duração da paragem para H2O salta imediatamente à vista (diferentes exercícios têm diferentes durações da paragem para hidratar). A localização dos treinadores no exercício é outro aspeto.
Nesta imagem podemos ver também o cuidado com a indicação das referências para estabelecer o espaço do exercício. O que manda é o jogo e que espaços emergem para ser utilizados durante a fase de construção (fase objetivo do exercício). É "decisivo" que o espaço que os jogadores encontrem neste exercício seja o mais próximo possível ao que vão encontrar no jogo seguinte (atendendo a que estamos num 6x6 e não num 11x11).
Em cada treino: a mesma receita, mas de ingredientes bem diferentes
Como já deu para perceber até aqui, cada sessão de treino é planeada dos pés à cabeça, o detalhe é muito, e tudo o que dá para entender a esta distância tem um porquê bem definido detrás.
Fico com a sensação que há um esforço para fazer de cada treino, para além de aquisitivo, desafiante e "fresco". No entanto, é também percetível a utilização de uma matriz orientadora presente em cada plano, a tal receita, que me parece trazer pelo menos duas vantagens:
- O jogador pode não saber em concreto o que vai encontrar em cada dia, mas fará uma ideia de que tipo de exercícios vai encontrar e em que altura do treino lhe são exigidos que tipo de respostas;
- A maior facilidade no planear de um dia/semana de treino quando deixamos de precisar de pensar na sequência e tipo de exercícios para cada dia e nos focamos apenas em desenhar os que mais se adequam à estrutura que nos dá mais confiança no momento.
Neste caso com AVB, são vários os aspetos comuns a todas as sessões de treino:
- O aquecimento envolve sempre uma mobilização sob a dinâmica em maior foco nessa sessão;
- Após o aquecimento temos sempre um exercício de combinações padronizadas (incluindo aqui o trabalho de bolas paradas);
- Todas as unidades de treino incluem jogos reduzidos (4x4+4, GR+5x6+GR, 6x6, GR+3x3+GR, ou 11x11 na grande área, são alguns exemplos);
- O número de jogadores por equipa aumenta com a progressão da unidade de treino;
- A parte final inclui sempre exercícios de alongamentos e de recuperação;
A preparação estratégica para o próximo jogo
Dos quatro planos treinos que podemos analisar, três deles introduzem de forma substancial estruturas e comportamentos do próximo adversário.
O Benfica de Jorge Jesus de há 10 anos atrás tinha mais semelhanças que diferenças comparado ao atual. E olhando a como pretendia AVB contrariar aquele Benfica nessa altura é também muito do como imaginamos se poderia fazer se preparássemos esse jogo hoje.
No treino da quarta-feira anterior ao jogo são 4(!) os exercícios em que uma equipa enfrenta um meio campo em losango, e em dois desses ainda junta dois pontas de lança.
Uma equipa claramente a representar o adversário da Supertaça. Explicito no nome e na cor! Reparem na descrição "Re-criação da imagem situacional de jogo no meio-campo". E depois "critério" a aparecer duas vezes. Ou seja, o modelo de treino parece ser baseado em duas linhas principais:
- replicar o próximo jogo o mais fiel possível em treino;
- propor aos jogadores que decidam a partir de princípios;
Villas-Boas parece dizer aos seus jogadores "Isto é o que vão encontrar e queremos ser muito bons a fazer X. As respostas encontrem-nas vocês."
No treino de quinta-feira são 3 os exercícios em que uma equipa enfrenta um meio campo em losango, e em dois desses ainda junta dois pontas de lança.
Neste exercício, onde se pretendia trabalhar os momentos de organização defensiva e transição ofensiva, vemos esquematizado diferentes dinâmicas para as duas equipas, o 442 de Jorge Jesus e o 433 de Villas-Boas. Gostava de destacar duas referências sobre como o Porto se preparava para recuperar a bola na fase de construção do Benfica:
- Na descrição do exercício é descrito como se pretende o momento de *"Pressão conjunta. Comunicação e Liderança*". Dois termos que normalmente não associamos à pressão, que por norma é forte e/ou agressiva, mas que refletindo um pouco, claro, vemos que são essenciais.
- A nota sobre o "click" de pressão. A ordem é atacar o central com bola e garantir que todas as linhas de passe desaparecem.
No treino do dia anterior ao jogo o grande foco é a preparação das bolas paradas, com várias jogadas ensaiadas e...Hulk. O avançado brasileiro tem um pontapé fora do normal e são os vários os esquemas que concluem com a bola a ser-lhe servida fora da área para fazer uso do seu remate.
Nesta imagem o pormenor de haver bolas paradas que são preparadas com oposição, enquanto outras são abordadas só com dois adversários. As razões podem ser várias. No caso deste canto "curto", a oposição está só nesse primeiro momento, o mais fulcral para Belluschi, Varela e Hulk conseguirem criar as condições para o remate do brasileiro.
Notas finais
André Villas-Boas é um treinador minucioso no que quer levar para o treino.
Estes planos podiam ser feitos a caneta de uma só cor e sem uso de régua, mas serviriam apenas para outro tipo de treinador. Mesmo que o efeito prático seja igual, o ganho na legibilidade em campo e facilidade com que outros membros da equipa técnica podem interpretar o plano já vale o trabalho extra.
Gosto das várias referências durante a semana em como a aproximação ao jogo no exercício é tão importante. Não é só as dinâmicas e constrangimentos que se criam no exercício, são também as dimensões do mesmo, ou onde no campo é que o fazemos.
Fiquei de olho naquele 11x11 dentro da grande-área. É um exercício que me deixa curioso para ver para que estado vão os jogadores e o grau de "carnificina" que sai dali. A ver se convenço a minha equipa técnica a pô-lo em prática.
Como sempre, é um prazer quando se levantam estes véus. As elações que tiramos podem ser as mais variadas, e isso nunca fez o Futebol regredir. Muito pelo contrário.