Nós treinadores, às vezes gostamos de arranjar lenha para nos queimar1.

Na última jornada de apuramento para o Mundial do Qatar, Portugal ganhou ao Azerbaijão por 1-0, fruto de um autogolo.

Estatísticas do jogo Portugal x Azerbaijão
Estatísticas do jogo Portugal x Azerbaijão

Dominou de início a fim, o melhor em campo (para o goalpoint) foi o guarda-redes azeri, mas ainda assim o que saltou à vista foi a pouco "artística" exibição portuguesa. As perguntas ao selecionador nacional sobre a qualidade da exibição não se fizeram esperar e, antes do jogo seguinte frente à Sérvia, Fernando Santos disse muito:

“Quem joga mal dificilmente ganha. Para ganhar, tem de se jogar bem. Jogar bonito ou feio, isso é que já é diferente. Os treinadores querem que as equipas joguem muito bem. Agora, se me derem a escolher: "vais fazer um jogo muito bonito e empatas", então prefiro menos nota artística e ganhar.”

Acontece que no jogo seguinte Portugal voltou a fazer um jogo não muito bonito, para ser simpático, e...empatou. Depois de ao intervalo estar a ganhar por 2-0, na segunda parte a seleção apareceu transfigurada e o empate surgiu com alguma naturalidade se olharmos para a forma como os golos foram obtidos.

Mas a dúvida ficou, se preferimos menos nota artística e ganhar, então porque é que não ganhamos? Será que, por ventura, pensar em "preferências".

Não me parece que alguém tenha perguntado a Fernando Santos se ao intervalo pediu á equipa para ser mais pragmática ou mais artística. É que o desempenho, e o resultado, obtido foi tão diferente da primeira para segunda parte que se pode perguntar qual foi a intervenção do treinador.

Claro que ninguém perguntou. A pergunta não faz sentido nenhum. O futebol, e os que o jogam, não funcionam assim.

Sempre que um treinador entrar nesta falsa dicotomia entre o artístico e o resultado merece sair chamuscado. Ficamos todos mais pobres na ideia que fazemos do jogo. Podemos correr o risco de alguém pensar que se tem maior controlo do que o que existe na realidade. E mais grave, de que são estas preferências estratégicas do treinador, que

Entendam o seguinte: não existe nenhum interruptor. Não temos a nossa equipa num comando de consola que nos obriga a ter de jogar mais feio se quisermos puder ganhar e vice-versa.

Quando vos perguntarem por resultado vs nota artística só há uma resposta certa. Enquanto treinarem uma equipa de seres humanos num desporto de oposição e qualquer que seja o contexto.

“A minha equipa vai dar o seu melhor para ganhar este jogo. Os jogos ganham-nos mais vezes quem os joga melhor. Se o nosso jogo vai ser bonito ou feito, deixo ao critério de quem o vir. Se vamos ganhar ou não, vai depender do quão mais capazes vamos ser do que o nosso adversário”

Eu quero atingir vários alvos com esta mensagem:

1️⃣ A tua equipa sabe o que tem a fazer e vai fazê-lo.

2️⃣ Isto é um jogo, com regras para obedecer e explorar.

3️⃣ O lado artístico é individual e não obedece a consensos pré-estabelecidos.

4️⃣ O resultado obtido depende da oposição que nos fazem.

Como treinadores "controlam" 1 em 4 destes fatores. Nunca se enganem em qual.

Não cometam o erro de passar a ilusão de que são mais artísticos ou pragmáticos por opção estratégica. De que se quisessem mudavam o cérebro a cada um dos vossos jogadores antes de determinado jogo ou com uma substituição.

Se forem MUITO competentes a vossa equipa vai ter uma identidade de que se orgulham. Isso mesmo, orgulho! E aqui Fernando Santos é dos selecionadores que mais orgulho parece ter nos seus jogadores. Venceu trofeus nunca antes conquistados por Portugal da única forma que os sabia ganhar. Sem lugar para dicotomias que não existem no futebol.

Se essa identidade, que vos enche de orgulho, faz das vossas equipas mais "pragmáticas" ou "artísticas", de acordo com os padrões atuais, vivam bem com isso e com o facto de dificilmente puderem mudar. Vivam bem com o facto de não puderem mudar por não sentirem outro futebol, ou por não saber como o fazer.

Ir de mais pragmático a mais artístico, ou ao contrário, é possível se tivermos em conta a distância da viagem, em tempo, esforço e exigência. Não existe é um interruptor de um jogo para o outro. Não é por irem jogar a casa do primeiro que vão decidir ser pragmáticos se não têm no vosso ADN ser outra coisa.

Querendo, sabendo, e não tolerando o que vos desvia do vosso caminho, vão lá chegar. Vão mudar para ser mais pragmáticos ou mais artísticos, mas vai levar o seu tempo.



  1. Baseado nesta minha thread no Twitter.