Estava uma bela manhã de primavera no dia 31 de março de 2019.
Sabem como é que eu sei? Porque a Atalanta foi jogar com o Parma ao Ennio Tardini e fez uma primeira parte nada de especial. Nada de especial para a Atalanta já sabem como é: não dão a bola a ninguém, os seus jogadores aparecem por todo o lado e quando menos se espera, e as oportunidades de golo sucedem-se umas às outras.
O que fez nunca mais me esquecer dessa manhã foram as 4 oportunidades de golo, só na primeira parte, em que por momentos deu para duvidar se não havia algo de errado com a transmissão televisiva. Todas com o mesmo fio condutor: o portador no corredor central, à entrada da área, a servir companheiros para ficarem na cara do guarda-redes do Parma.
11' - Remo Freuler para Duván Zapata
Os detalhes que imediatamente me saltam à vista passam pelos diferentes tipos de diagonais que combinaram às mil maravilhas. Diagonais de movimento dos jogadores e no passe.
A condução para enganar do Freuler
Freuler foi simplesmente perfeito. Conduz na direção do corredor central, e consegue dois objetivos com a mesma ação:
- aumenta o seu leque de opções de passe;
- atrai dois elementos da linha defensiva a si (DC e DD), libertando Zapata;
Para além disso, ainda assiste Zapata com conta, peso e medida. Como não estou na cabeça do médio da Atalanta posso apenas especular, mas este tipo de movimento, uma diagonal curta, com um passe repentino na diagonal oposta, é sempre um engano e faz lembrar Zinedine Zidane. O grande 10 francês usava e abusava deste recurso, porque obriga a rodar quem defende no sentido oposto de para onde vai sair o passe.
É algo para mostrarmos e ensinarmos aos nossos jogadores.
O desmarque perfilado do Zapata
A desmarcação de Zapata deve vir nos livros. O movimento que faz é na direção contrária à que avança o Freuler, o que lhe permite duas coisas:
- sair da sombra do Bruno Alves e do Iacoponi, dando uma linha de passe ao Freuler;
- impede que estes consigam acompanhar o seu movimento por via de terem de lidar com a ameaça mais premente no corredor central e que segue na direção oposta;
Isto é bom, mas o que poe a cereja no topo do bolo é como se perfila desde o início para ver toda a jogada e receber o passe. Movimento lateral a ver a bola e depois, quando garante o espaçamento, orienta os apoios como se fosse um central a controlar a profundidade . O resto é receção e finalização a dois toques. Melhor só se fizesse golo.
21' - Remo Freuler para Mario Pašalić
Freuler novamente a partir tudo. O destaque para aquela mirada antes de receber a bola e Pašalić a mostrar que vai aos treinos com Zapata.
Freuler "tira a fotografia" antes da bola chegar
A assistência é ao primeiro toque, mas o que permite que aconteça não é o elevado nível técnico que jogador aqui possa ter. É o ter percebido antes de a bola lhe chegar a quem é que a iria entregar. Freuler não se focou só na bola, apesar de esta estar uns poucos metros ao seu lado. Olhou precisamente para o espaço onde antes tinha aparecido Zapata: o intervalo entre central e lateral.
Quando a bola chega ao médio Suiço até havia espaço em excesso à sua volta. Tinha tempo para dar quantos toques quisesse. Mas Pašalić já estava pronto e Freuler não deu chances. Um toque a mais e pode ser o suficiente para a linha defensiva bascular o necessário, rodar os apoios na direção certa, ou apertar uma marcação.
O criar espaço em cima da linha defensiva pelo Pašalić
O padrão é o mesmo. Não perde a bola de vista, progride até chegar à mesma altura dos defesas do Parma e é só aí que dá os tais passos ao lado para criar o afastamento para o central. Mesmo que se aproxime do lateral a vantagem é muito maior: tem a posição ganha, e ficará sempre mais perto da bola e da baliza do que esse defesa.
Nota também para a inteligência de Zapata que, sem ver a posição do Pašalić, percebeu pelas características do passe que não era para ele e desvia-se ligeiramente para a bola passar.
24' - Papu Gómez para Mario Pašalić
Finalmente Papu Gómez e a mostra mais decisiva da vantagem de atacar pelo corredor central.
Papu Gómez no último terço, enquadrado, e com bola torna-se um fogo demasiado grande para apagar
Sabemos que fazer contenção ao portador da bola, dificultando a sua progressão ou passe na direção da baliza, é dos princípios mais básicos do que pode ser defender bem. Scozzarella fá-la aqui, mas independentemente da qualidade com a que a faz, parece-me que o destino deste lance já estava traçado com o sem o médio do Parma pela frente.
Não é preciso ter toda a qualidade de Papu Gómez para causar muitos estragos com a bola ali. A contenção que Scozzarella faz tira-lhe talvez 4-5 metros, em 68 de largura, que ele não pode almejar. Sem ter de ultrapassar o médio italiano, pode "simplesmente" tocar a bola para o lado e escolher qualquer um dos colegas em cima da linha defensiva adversária.
Podemos também imaginar que, com os mesmos jogadores, na mesma situação, mas num dos corredores internos, as opções disponíveis, para com um passe deixar o colega na cara do guarda-redes, são mais reduzidas. Já para não falar no caso dos corredores laterais.
Pašalić ganha espaço aproximando-se do adversário
Neste lance fica ainda mais evidente o detalhe do médio Croata. Seria de pensar que o melhor posicionamento para atacar a linha defensiva fosse numa posição equidistante dos adversários, conseguido logo duas coisas:
- maximiza a distância que cada defesa tem que percorrer para lhe dificultar a progressão da jogada;
- provoca uma "crise de decisão" aos adversários, que podem acabar por ficar na dúvida de quem sai e não sair nenhum (ou saírem fora de tempo);
E esse tipo de posicionamento pode até ser o melhor na maioria dos casos, mas não aqui. Pašalić "encosta-se" ao defesa esquerdo, aumentando não a distância para todos os adversários, mas sim para o adversário que lhe pode dificultar a finalização (o central esquerdo) e que lhe vai permitir chegar a esse duelo com outra velocidade e possibilidade de drible. Na melhor das hipóteses até pode ter contribuído para criar uma falsa sensação de segurança a esse lateral por sentir o jogador da Atalanta tão perto.
28' - Duván Zapata para Hans Hateboer
Papu Gómez a entrar pelo corredor central e um ponta de lança a assistir um lateral. Tudo normal no reino de Gasperini.
Este 9 joga bem de costas para a bancada central
Se calhar está na altura de revermos o conceito do ponta de lança que tem de saber jogar de costas para a baliza para poder contribuir na progressão do jogo ofensivo das suas equipas. É superinteressante ver o estimulo que leva o 9 da Atalanta a rodar o corpo à medida que o Papu Gómez se livra dos adversários.
É de um ponta de lança que sente que está em campo para ajudar a equipa a fazer golos, mesmo que possa não marcar nenhum. A sua intenção de assistir o 10 da Atalanta acaba por não resultar, mas quando envolves vários jogadores na organização ofensiva e estes ocupam posições com critério é normal que aconteçam estas segundas oportunidades.
As diagonais no último terço dos laterais
Os dois laterais da Atalanta estão em linha com a defesa do Parma durante toda a jogada. Para além disso garantem a tal distância de "ataque" para o defesa mais próximo, seja o central desse lado (no caso de Hateboer), ou o extremo do lado oposto (no case de Castagne).
O que é que permite este posicionamento mais interior dos laterais? Pelo menos três coisas:
- Podem finalizar jogadas, como esta, com diagonais nas costas do central desse lado;
- Podem "ir à linha", dentro da grande área, e fazer passes atrasados que por norma são bastante difíceis de defender;
- O simples "estar" deles ali, fixa o lateral adversário a uma posição mais exterior, desprotegendo o corredor central e as eventuais coberturas aos centrais;
Os princípios da fase de criação da Atalanta
Olhando para estas quatro oportunidades, o desafio é agora perceber o que têm em comum e que favorece a sua criação e finalização. A esses princípios, dinâmicas, ou comportamentos correspondem diferentes níveis estruturais e de complexidade, mas não se ficam por aí. A razão de existir de um desses princípios é os restantes estarem lá para lhe darem sentido. Colocar os nossos laterais naquelas posições de último terço "pede" tudo o resto que suporte e alimente isso. É um aviso que tenho de fazer a mim próprio no "roubo de ideias". O quadro pode ser muito bonito e valioso, mas se o trazemos para casa convém ter onde o pendurar e que lhe faça justiça.
Os grandes princípios
- Atacar pelo corredor central;
- Diagonalidade nos movimentos e nos passes;
- Mais do que ocupar os vários corredores em simultâneo, fixar os centrais e esticar os laterais;
- Aumentar a velocidade de decisão e execução com o aumento da densidade de adversários
Os sub-princípios
- Criar condições para ter a bola no último terço, enquadrado, e em frente à meia-lua;
- Ocupar espaços à altura da linha de fora de jogo;
- Fixar defesas adversários nos corredores mais distantes da zona da bola;
- Conduções para atrair e/ou fixar elementos da linha defensiva do adversário;
- Jogar a 1-2 toques;
Os sub-sub-princípios
- Desmarcar-se sem perder a bola de vista;
- Desmarcar-se podendo receber a bola durante o movimento;
- Orientação corporal para poder servir companheiros quer na direção da nossa baliza, quer na direção da baliza do adversário (de costas para a bancada central);
- Dar as costas aos laterais adversários para ganhar o espaço até ao central;
- Rodar o pescoço antes de receber e detetar companheiros a ameaçar a linha defensiva do adversário;
- Passar na diagonal contrária à da condução, i.e., se conduzo para a direita, passo para a esquerda e vice-versa.
Como operacionalizar estes princípios em treino? Talvez seja matéria para um próximo artigo, mas é definitivamente um desafio que lanço, desde já, ao caríssimo leitor.
O que é certo é que adoro estas oportunidades de golo que a Atalanta cria.