Esta é a segunda, e última parte, do esmiuçar da vinda de Vítor Pereira ao Quarentena da Bola. A primeira parte encontra-se aqui.
modelo de jogo
Que"O modelo adotado é a qualidade dos jogadores" - Vítor Pereira
Com uma ideia tão simples se desmonta muita da complexidade que por vezes queremos trazer a uma equipa de futebol. De ideias de jogo, as tais "intenções prévias", está o inferno cheio.
Vítor Pereira não se cansou de sublinhar ao longo de toda a conversa como pretendia dotar as suas equipas de soluções dinâmicas, variadas e, como não podia deixar de ser, oriundas da sua identidade e da sua maneira de ver o jogo. Mas sublinhou outra coisa na mesma medida. Que o caminho se faz com os jogadores e não apesar dos jogadores.
Somos nós, os treinadores, que temos de ir ter onde os jogadores estão e começar dali o caminho. Não o contrário. Contudo isto não é abrir mão da nossa ideia de jogo. É apenas um certificar que a haver uma modelação essa é marcada pela qualidade dos jogadores à nossa disposição. Na tal grande viagem do treinador, da nossa ideia de jogo à identidade da nossa equipa, são os nossos jogadores que nos limitam alguns caminhos, que fazem de uns fáceis e outros intransponíveis.
Mais do que variabilidade, agilidade
"Nós neste momento andamos aqui com um desafio que é: será que eu aqui na China consigo pôr a minha equipa a jogar em 4-3-3 e alterar para 3-4-3 só com uma indicação para dentro de campo? Porque se nós conseguirmos fazer isso, nós vamos criar problemas." - Vítor Pereira
Falamos mais do leque de planos que um treinador terá preparado do que da facilidade com que alterna entre eles. E se hoje, mais que nunca, apostamos tudo em estar o mais preparados possível para "os vários momentos do jogo®©™", isso também passa por alterar a estrutura tática em função das dinâmicas que queremos reforçar ou eliminar dentro de campo.
Das vantagens da variabilidade de planos já Vítor Pereira dá como garantidas, a grande dificuldade está na facilidade como que os jogadores vão do plano A ao B. O que é que precisam para, dentro de campo, mudarem o chip, de missões e até de posição?
Já todos vimos jogadores entrarem, depois de uma substituição, com um papel cheio de rabiscos que vão passando de mão em mão. Ou vão gesticulando para meia equipa as instruções que recebeu. Não é bem isso que Vítor Pereira pretende. Quanto maior a quantidade de instruções necessárias para alterar de A para B, menos familiar é essa alteração para os jogadores em campo. Até podem ser profundos conhecedores do plano A e B, mas haver confusão para ir de um para outro.
É preciso agilidade.
Treinar em 4-3-3 e o 3-4-3 é necessário, mas o que vai levar a equipa para outro patamar é treinar o 4-3-3 e o 3-4-3 no mesmo exercício, na mesma repetição, sem ser preciso uma paragem para recuperar ou para trocar de coletes para se dar a alteração. Vai dar confusão? Se calhar e ainda bem. São essas as arestas a limar.
Do nosso modelo à realidade vai uma distância (muito) grande
"Eu fui construindo um (ideia de) jogo, um jogo que me dava prazer, de alguma complexidade, só que depois caí na realidade." - Vítor Pereira
O contacto com o adversário é muitas vezes como o algodão. É o teste àquilo em que acreditamos, mas se calhar mais. É um teste de humildade e sabedoria para mostrarmos como reagimos quando o nosso modelo da realidade se mostra incompleto, desfasado ou pura e simplesmente errado.
Cair na realidade é isto. É reconhecer que há uma distância entre aquilo que julgávamos ser o funcionamento da máquina e o que se passa na realidade (ou a nova versão do que achamos ser essa realidade).
Vítor Pereira até conta durante a conversa que no início da sua carreira de treinador, nos escalões de formação do FC Porto, contava todos os fins de semana com uma superioridade qualitativa sobre os adversários que lhe permitiu criar uma conceção de jogo de domínio de posse e de pressão alta. Essa é uma realidade. No entanto quando chega ao Sp. Espinho, e até no Santa Clara, tem jogadores, adversários e contextos que, imagino, quase que obrigue a aprender tudo de novo.
"Comecei a chegar à conclusão que, eu no Espinho, provavelmente estava a propor um nível de jogo que eles, apesar de ter boa equipa, não estavam a conseguir responder(...) comecei a pensar que alguém, com ideias mais simples, teria melhores resultados que eu." - Vítor Pereira
Fiquei com algumas dúvidas do que serão aqui "ideias mais simples". Serão ideias de menor variabilidade (propomos um menor leque de comportamentos) ou ideias mais fáceis de pôr em prática (propomos um outro leque de opções) pelos jogadores à disposição?
A imprevisibilidade é chave
"Eu quero que as minhas equipas sejam imprevisíveis. Imprevisíveis a defender e imprevisíveis a atacar."
Esta afirmação vem ligada ao tema da identidade, das equipas de autor ou até das equipas reconhecíveis mesmo com o equipamento trocado. Essa não parece ser grande ambição de Vítor Pereira. Pelo menos não há a ambição da identidade como um fim, mas sim como um instrumento para algo. O que o treinador pretende é imprevisibilidade aos olhos do adversário, mas rotina para os seus jogadores.
"Nuestra identidad debe ser camaleónica. Que no haya unos patrones fáciles de reconocer por el rival. Eso no nos interesa. El rival no tiene que reconocernos. Tenemos que reconocernos nosotros." - Enric Soriano (aqui)
Um exemplo poderá ser de como pressionamos a 1ª fase de construção do adversário.
A rotina são os princípios e referências de pressão, isto é, todos os jogadores conhecem as trajetórias a percorrer, como tapar linhas de passe enquanto pressionam, os momentos de acelerar sobre o adversário/espaço/bola, as reações adequadas à pressão ultrapassada, ou o detetar de diferentes fragilidades individuais (quem fecha o campo quando recebe, quem só recebe com um pé, quem não vê a pressão pelo lado cego, quem precisa sempre de mais um toque, etc). Tudo sobre o saber pressionar naquela fase, independentemente do adversário ser uma equipa de Guardiola ou de Zidane.
A imprevisibilidade é aquele extra que nos dará um salto de qualidade quando defrontamos um adversário em específico. É pegar no "nosso pressionar" e montar armadilhas especificas para atacar o que conhecemos do adversário. Se o adversário tem como tendência procurar sair pelos laterais isso dá-nos, pelo menos, duas opções:
- Preparar uma zona de pressão nos corredores laterais, onde já sabemos que o adversário vai jogar e como o vai fazer;
- Bloquear o acesso aos corredores laterais e dar um engodo que leve o adversário a jogar pelo corredor central.
A decisão por uma destas formas de abordar o próximo adversário pode, e deve, ser suportada naquela que maior imprevisibilidade represente. Algumas heurísticas para maximizar essa imprevisibilidade são:
- Se nos últimos jogos o nosso adversário foi pressionado sempre da mesma forma, então vamos faze-lo neste de forma diferente;
- Se nos últimos jogos pressionamos sempre da mesma forma, então vamos faze-lo neste de forma diferente;
- Mudar a forma como pressionamos no decorrer do jogo
Diz-me onde queres os melhores, dir-te-ei como jogas
"Quando chegamos a um clube o que nós temos de fazer é por os grandes decisores, aqueles que sabem controlar o jogo, que querem bola e tem capacidade para decidir, no centro do jogo. O mais possível." - Vítor Pereira
Esta frase mostra bem por onde Vítor Pereira começa a pensar as suas equipas. Pela bola e por aqueles que melhor uso fazem dela. É a primeira marca das suas equipas. A segunda é que quer juntar os melhores e a bola no centro do jogo.
Nesta conversa dá vários exemplos de como faz os arranjos necessários para que isso aconteça: os extremos que se metem por dentro (ainda hoje está por calcular o valor dos prejuízos causados por James Rodriguez quando partia da direita para o meio), ou o ponta de lança que baixa para se juntar ao trio do meio campo.
E os jogadores não tão fortes com bola, ou que sejam mais fortes no espaço? A esses também se pode empregar onde façam mais estragos no adversário.
"Aos jogadores que são fortes no espaço nós temos de lhes dar as condições para desequilibrar naquilo que são fortes, porque se eu tenho um jogador que é forte no espaço, por dentro ou por fora, mas quando vem receber no pé perde as bolas todas, eu tenho que o pôr à vontade para ele ser forte no espaço" - Vítor Pereira
Reparem que seria "fácil" para o treinador não ter agilidade para pedir coisas diferentes a jogadores diferentes. Pedir a todos a mesma coisa, porque a ideia do treinador é jogar apenas de uma forma. Mas não é isso que Vítor Pereira propõe. Até se parece notar algum tom de confissão depois de ver muitos jogadores na sua carreira tentarem fazer o que pede (vir receber entre linhas) e o grau de sucesso não ser o que exige. A expressão "pôr à vontade" diz muito.
Uma questão de linhas e ângulos
(Sobre as diferentes estruturas da 1a fase de construção) "Tu podes por um 6 a encaixar no meio dos centrais, tu podes por um interior a abrir à largura, nós às vezes com o Fernando até dizíamos assim: "estás sob marcação então sais e vem o Moutinho buscar, ou sais para o outro lado e vem o Lucho". Nós temos é de arranjar condições para sairmos." - Vítor Pereira
Esta parte da conversa foi maravilhosa porque podemos ver "em direto" Vítor Pereira a desmontar o que é a 1ª fase de construção até chegar aos primeiros princípios. Tirando as variantes, as adaptações, a estratégia, e por fim a questão dos jogadores, Vítor Pereira deixou só o essencial para sairmos desde o guarda-redes de forma limpa: as linhas de passe disponíveis para jogar, para atrair a pressão, e para criar espaço.
"Eu agora, dependendo de quem temos, nem quero que o meu 6 encaixe em lado nenhum, se ele vem encaixar e depois a qualidade decisiva, de frente para o jogo, não me acrescenta nada." - Vítor Pereira
Não é só metermos um 3º elemento na primeira linha de construção que já damos a volta ao adversário. Se com 2x1 não dá, dificilmente o problema será da falta de superioridade numérica, ou de algo que um 3x1 vá resolver. Com dois avançados na primeira linha de pressão, o 3x2 pode ser um princípio de solução, mas quais são as capacidades desse 3º elemento? Vai conseguir atrair e jogar numa segunda linha? Vai jogar sempre para o lado e dar descanso a quem pressiona porque não se tem de preocupar em fechar essa linha de passe?
"Então prefiro que ele esteja entre linhas, porque se eu tiver jogadores entre a primeira (avançados) e segunda linha (médios) de pressão do adversário eu vou ter gente a ser atraída na pressão, os médios deles vão ser atraídos, e onde é que me vão libertar o espaço?" - Vítor Pereira
Assim sendo, também se mostra a outra utilidade do primeiro passe curto. O passe que serve para chamar a pressão. Pressão essa que pode ser evadida por intermédio de outros passes curtos, e que muitos podem ver de maior risco, mas também podemos perceber se à medida que esses passes se acumulam não estamos a desimpedir zonas do terreno mais avançadas.
(Comentários na final Champions League 2011 - minuto 23)
Juanma Lillo - "Pedro no la está tocando y sin embargo es el que más está ayudando al equipo."
Narrador - "Esta trabajando mucho, no?"
Juanma Lillo - "Trabajando no! Quedando se quieto!"
Aí é decisivo a presença e movimento dos nossos jogadores que ameacem a profundidade ou que fixem defesas a zonas mais distantes do centro do jogo. A oportunidade do passe longo pode aparecer aí ou habilitar que se construa mais facilmente por dentro. É jogo de posição, puro e duro.
"Eu quero é ter ângulos de passe, linhas de passe permanentes que me permitam atrair para depois jogar lá."
Sobre o que é, então, a 1ª fase de construção? E como devemos decidir que recursos utilizar nessa fase? Que jogadores estão e que jogadores aparecem? Reduzam os detalhes até a imagem estar tão clara como a que Vítor Pereira apresenta, e construam a partir daí.
O deixar o adversário (des)confortável
(Sobre os problemas que a linha de 6 do Tondela causou ao Benfica) "Se as coisas não estão a dar, eles fazem uma linha de 6 e estão confortáveis lá trás, e andaram a trabalhar aquilo toda a semana, sabes o que é que eu lhes queria dar a seguir? Se calhar eu prefiro ter os meus dois laterias baixos, a atrair os alas deles, para depois nós podermos entrar. É isto que eu digo, não pode ser sempre da mesma forma." - Vítor Pereira
Quando se prepara um jogo em função do tipo de dificuldades que o adversário nos vai colocar corremos um risco evidente: o poder entrar em território que não nos é familiar, irmos contra princípios da nossa identidade, só porque isso é o que nos pede a melhor estratégia para o jogo.
"Nós temos de ter uma identidade e é com base nessa identidade que introduzimos o lado estratégico, se for ao contrário está tudo estragado." - Vítor Pereira
No entanto, parece ser quase tão perigoso, abordar um jogo sem ter uma alternativa estratégica, caso o nosso plano A não esteja a surtir o efeito desejado. Isto porque o nosso adversário, sabendo do nosso plano A, daquilo que é o ADN do nosso jogar, tem, em teoria, todas as condições para durante uma semana de treinos montar um plano de jogo que nos deixe verdadeiramente desconfortáveis e inconsequentes.
É melhor esperar o pior dos cenários. E se o nosso plano A tem o adversário confortável, o plano B não deve ser só algo diferente, mas também que maximize o que o adversário não quer/sabe fazer.
"Eu antigamente era bloco intermédio e à espera dos referenciais de pressão para acelerar (e enumera os vários referenciais), agora dou-lhes duas coisas completamente diferentes: ou pressiono alto, ou não pressiono e espero(...) porque nós queremos criar duas coisas distintas: uma coisa que é sufocante e a seguir uma coisa que lhes dá a sensação de conforto e os convida a deixar de estar confortáveis. Então vêm por lá fora, começam a jogar e nós em transição matamos." - Vítor Pereira
Dar a bola a quem preparou o jogo sem ela. Não pressionar quem preparou o jogo dentro da panela de pressão. Talvez o melhor plano B seja fazer com que a semana de treinos anterior ao jogo de nada valha ao adversário.